Estudos do Design #2 - A influência de Théo van Doesburg na criação e popularização da ‘Nova Tipografia’



            A História da humanidade é imprescindivelmente a história da arte, e como qualquer estudante ou curioso que já tenha em algum momento se interessado pela história da arte moderna e contemporânea é possível que você já tenha, pelo menos, ouvido falar da famosa Staatliches-Bauhaus, ou somente Bauhaus, como é mais comumente conhecida a escola alemã de design.
            A Bauhaus foi fundada em Weimar, na Alemanha, em 25 de Abril de 1919, momento pós Primeira Guerra Mundial, época na qual o referido país se encontrava num momento de frágil estrutura política e era conhecido como República de Weimar. A escola se mudou ainda duas vezes, tentando fugir da perseguição do governo nazista, uma para Dessau e outra para Berlim, ambas cidades alemãs. Seu fundador e diretor, Walter Gropius, foi um arquiteto alemão considerado um dos maiores nomes da arquitetura no séc. XX. O propósito da fundação da escola era ser uma instituição de ensino de artes, arquitetura e design. Seu projeto de ensino mudou algumas vezes durante seu breve período de existência, que durou de 1919 até 1933, a mando do governo nazista por considerar a instituição uma ameaça comunismo, por concordarem com os movimentos modernista e também por abrigarem professores e alunos russos. No início, a Bauhaus teve um viés forte, apesar de breve, da vanguarda artística europeia do expressionismo, isso por causa da influência de alguns de seus professores como Johannes Itten, pintor e professor de arte suíço que deixou sua marca em oficinas e até na organização e estruturação dos cursos da escola alemã mesmo depois de sua saída, em 1923, por divergir da proposta de Gropius que objetivava a associação entre indústria e arte através da própria escola.  Uma dessas fortes influências de Itten foi o curso básico preliminar, o Vorkus, ao qual todos os alunos eram submetidos ao ingressar na escola. Nesse curso, Itten propositava que os alunos eliminassem da mente tudo aquilo de conhecimento prévio que traziam consigo, para que pudessem ser novamente educados, como se fossem crianças. Após a saída do pintor suíço, Kandinsky e Moholy-Nagy deram continuidade ao curso proposto por ele. Apesar de no início a Bauhaus ter tido esse viés expressionista, desde sua fundação o objetivo dela era criar uma unidade visual que compreendesse todas as artes, o que futuramente ficou conhecido por Estilo Internacional, que dentro dessa perspectiva fazia parte das crescentes vanguardas modernistas da época. Dentro das quais iremos nos adentrar no chamado ‘Movimento De Stijl’ ou também ‘Neoplasticismo holandês’.
            O movimento neoplasticista holandês surgiu numa época em pós-Primeira Guerra em que a Holanda se encontrava em pleno caos e clamava por pureza e organização, e foi exatamente isso que propôs o De Stijl, que em holandês significa ‘o estilo’, iniciado em 1917, e que ganhou esse apelido por causa de uma publicação de dois famosos artistas holandeses da época Piet Mondrian e Théo Van Doesburg, considerados os pais dessa vanguarda, pois eles passaram a publicar naquele ano uma revista homônima do movimento que falava de artigos tratando de uma composição de página completamente tipográfica, rejeitando os usos de ornamentos, aplicando também em sua própria produção e no layout da revista os princípios neoplasticistas.

“A revista De Stijl apresentava um dos mais inovadores conceitos gráficos até então formulados e influenciaria, em muito, as vanguardas europeias, incluindo a tipografia de Bauhaus.”
(ARGAN, 1998, p. 406-414; DEICHER, 1994).

O objetivo dessa vanguarda serviu muito para a gênese da ideologia da Bauhaus, até então inexistente, pois pregava que as artes possuíam uma só linguagem universal que poderia ser traduzida de forma sucinta em formas, cores, soluções, etc. que fossem elementares, irredutíveis e totalmente essenciais à mensagem que se fosse transmitir.

“O racionalismo formal do de Stijl estava baseado em um amplo programa artístico. A partir dos elementos fundamentais das artes plásticas pretendia-se configurar um novo mundo ideal.”
(MARTÍNEZ, N. F. A Tipografia como Imagem. 2004. pp. 6)

A ideia para eles era que a linguagem era tão somente compreendida de forma universal através da percepção biológica inerente ao ser humano, logo essa linguagem deveria ser o mais elementar possível, para que fosse compreendida de forma universal. Como escreve MARTÍNEZ em sua obra TipoGrafia como Imagem, a linguagem no movimento holandês “Queria ser compreensível a partir de si mesma, sem referência ao mundo dos objetos nem à reprodução figurativa. ”. (MARTÍNEZ, N. F., 2004, pp. 5)
No De Stijl, então, podemos encontrar poucas obras desse movimento, mas elas traduzem bem o que se esperava nessa vanguarda da linguagem visual. Tendo sido o neoplasticismo conhecido como o mais ‘puro’, ou seja, elementar, dos movimentos abstracionistas, teve ele uma enorme repercussão de suas ideias mesmo sua existência tendo sido tão breve, basicamente tendo durado por 15 anos, tempo em que foi publicada a revista De Stijl. Suas linhas retas, ângulos retos, cores primárias complementadas pelo uso de retículas de preto e seu uso puro da tipografia e do uso do grid criaram um eco ideológico que perdura até hoje e influenciou dezenas de movimentos artísticos desde então.

“Kandinsky chamava o grid de quatro quadrados de “o protótipo da expressão linear”[...]. Similarmente o movimento holandês De Stijl, liderado por Théo van Doesburg, identificou o grid como a origem fundamental da arte. ”
(MILLER, LUPTON, ABC da Bauhaus. 2008, pp. 32)


DOESBURG, Theo Van. ‘Composição VIII (A vaca) ’. 1918.


MONDRIAN, Piet. ‘Composição A’, 1920.











     Tratando-se então de influencias, o movimento neoplasticista holandês trouxe os holofotes do design para um assunto que há um tempo havia sido esquecido: o design com tipos e de tipos. Ainda de acordo com Martínez, na mesma época de surgimento do De Stijl, “a Holanda ficou envolvida numa tradição essencialmente tipográfica a partir de 1917”, influência direta da vanguarda neoplasticista.  
Na revista De Stijl, o uso enxuto e organizado da tipografia deixava claro que a intenção era trabalhar a tipografia não somente como uma representação do verbal, mas como um elemento visual ao qual se atribui claramente a hierarquia das informações e traz um percurso visual intuitivo e bem demarcado para o leitor. Os designers do De Stijl utilizavam-se de letra pesadas, linhas perpendiculares - que posteriormente foram substituídas por linhas diagonais - uma regularidade formal que era exageradamente geométrica, racional e excessivamente rígida. Como fundador e, então, editor-chefe da revista supracitada, Théo Van Doesburg, artista holandês multifacetado, acabou por se tornar um porta-voz do movimento que surgira e corroborava com o intuito do impresso. Com isso, se viu pressionado à tomar frente das contribuições que o movimento viria a dar no campo artístico e do design. Dentro dessas contribuições, Théo criou um interesse muito exacerbado, como já era de se esperar, pela construção e desenvolvimento do grid e do desenho tipográfico, assim como pelo uso dos tipos. Esse interesse não era, no entanto, de modo algum desvinculado, o holandês via grid e tipografia como componentes intrinsecamente interligados e como sendo o cerne de uma linguagem visual clara e objetiva no design gráfico. Como escreve MILLER e LUPTON (2008, pp. 32) Van Doesburg aplicou o grid ao alfabeto, transformando as formas tradicionalmente orgânicas e contínuas destes em elementos repetitivos e descontínuos.
 Acabou dedicando 15 anos da sua vida em escrever, muitas vezes, quando a revista já estava em decadência, sob pseudônimos, editar, publicar e divulgar massivamente a De Stijl. Numa de suas tentativas de expansão da vanguarda, em 1921, Doesburg foi à Bauhaus para conhecer suas instalações, que nessa época ainda experimentava sua época expressionista, levada à cabo por Johannes Itten. Posteriormente à sua incursão, Théo passou a flertar obcessivamente um cargo na prestigiada escola, chegou a entrar em contato com o diretor-fundador da escola, Gropius, mas não foi contratado. No entanto, o holandês não se deixou abater, e se estabeleceu em Weimar durante algum tempo, onde realizou palestrar, oficinas e eventos sobre os princípios artísticos que acreditava, fazendo até amizade com alunos e professores da Bauhaus, dos quais angariou um pequeno grupo de devotos de suas convicções e da vanguarda De Stijl.

“Os alunos e professores da Bauhaus receberam a influência do pintor suíço Theo van Doesburg, cujo movimento De Stijl seguia um rigoroso dogma geométrico. Van Doesburg fez contato com Gropius em 1920, que não quis contratá-lo devido a seu programa dogmático, mas van Doesburg contribuiu muito para a mudança estética na Bauhaus ao se mudar para Weimar e criar grupos de discussão e palestras. ”
(SAMARA. Grid: construção e desconstrução. 2008, pp. 6)

Nos longos 15 anos de existência da revista De Stijl, seu fundador postulou algumas teses, hipóteses, teorias e achismos, os quais eram todos publicados na anteriormente referida revista. Uma dessas teorias era a do Elementarismo, em que declara a linha diagonal como um fundamento de composição mais eficiente que as construções perpendiculares. De acordo com MARTÍNEZ (2004), em sua obra TipoGrafia como Imagem, aplicando essa metodologia, o produto gráfico produzido culmina num estilo estritamente geométrico, que serviu de base para uma enorme parte do trabalho subsequente elaborado na Bauhaus.
Para entender como Van Doesburg influenciou na tipografia produzida na Bauhaus nos anos que se seguiram após sua visita é na verdade algo bem objetivo, mas é preciso entender quem foram as ligações pessoais e profissionais dele nos anos em que se estabeleceu em Weimar. É preciso também compreender que Théo, enquanto fundador e mais recorrente provedor de conteúdo para a continuidade e sobrevivência do movimento De Stijl, teve uma influência que perpassou pela escola alemã e se expandiu além de seu escopo para o que subsequentemente se tornou o que se denominou como Neue Typographie, do qual trataremos mais adiante. No momento, faremos relação de como o estilo tipográfico criado pelo holandês adentrou nas produções bauhausianas.
Como dito anteriormente, Doesburg se estabeleceu em Weimar, por volta do ano 1921, após uma visita à escola, na tentativa de se tornar professor na instituição, o que foi uma tentativa falha, pois Gropius o considerava muito dogmático, e achava que admitir o holandês em seu corpo docente­ seria como permitir que o projeto dogmático do De Stijl adentrasse à sua escola e doutrinasse seus alunos como uma forma de imposição. Após isso, o holandês não se deixou abater, fez de sua casa um centro de encontro, discussões, palestres, oficinas, e tudo mais que pudesse ser feito como forma de divulgar seus estudos e a arte e o design de modo geral. Essa iniciativa dele fez com que sua casa se tornasse um ponto de encontro de estudantes, professores e pessoas relacionadas à Bauhaus. Dentre esses interessados nas discussões propostas por Théo estava o artista visual e professor húngaro László Moholy-Nagy.

“Embora Van Doesburg não tenha sido convidado a juntar-se à Bauhaus, influenciou a escola proferindo seminários informais em Weimar. Os princípios do De Stijl são evidentes na tipografia produzida na Bauhaus por Lászlo Moholy-Nagy, Josef Albers, Herbert Bayers e Joost Schmidt. ”
(MILLER, LUPTON, 2008, pp. 32)

László nasceu na Hungria, cursou Direito, mas não terminou, pois serviu no exército húngaro, após ser ferido em conflito durante a Primeira Guerra, dedicou seu tempo de recuperação a produção de obras artísticas, como aquarelas. Logo após, com a derrota da República Soviética Húngara, se exilou em Berlim, onde entrou em contato com as vanguardas artísticas em alta na época. No início, Moholy-Nagy foi bastante influenciado pelo expressionismo, mas logo passou para os estilos abstratos, com forte influência do Dadaísmo e do Construtivismo, este último graças ao seu amigo El Lissitsky. Em 1923, após a saída de Itten, o húngaro tomou a frente do Curso Preliminar (Vorkus) da Bauhaus, ficando lá até 1928. Nesse mesmo período foi quando entrou em contato com Van Doesburg, a quem se tornou amigo e sendo o qual lhe introduziu ao movimento neoplasticista, assim como aos seus estudos e teorias referentes ao design tipográfico. Como escreve PAVESI, em sua obra ‘Arte e Indústria na Arquitetura Moderna Bauhaus: Tipografia e Design Gráfico. Antes de Moholy-Nagy assumir o cargo de professor na escola alemã, a expressão tipográfica na escola era muito escassa, se resumindo à poucas experimentações de cunho futurista ou de letreiros manuais que eram mais uma extensão da caligrafia que de fato uma manifestação tipográfica.
Em pouco tempo dentro da Bauhaus, László tornou-se editor chefe das publicações da escola, desde cartazes de exposições à impressos mais extensos. Com a influência trazida por Théo Van Doesburg, ele se enveredou a estudar e produzir cada vez mais sobre tipografia, chegando a produzir peças com o próprio Van Doesburg. Partindo para uma comparação mais visual da influência do holandês, segue abaixo uma produção de tipografia feita na Bauhaus em 1923 em comparação a uma tipografia feita pelo mesmo em 1920:


 

Na esquerda um cartaz produzido na Bauhaus em 1923, ao lado uma produção de Doesburg de 1920.

   







Acima, um grid modular como base de construção da tipografia do cartaz mostrado anteriormente.


Chegou inclusive a publicar, no ano de 1923, um manifesto sobre tipografia intitulado ‘Die Neue Typographie’, que significa ‘A Nova Tipografia’ em tradução livre, no qual trata sobre a projetação, uso e divulgação do que ele chamada de ‘nova tipografia’, que se tratava de uma tipografia funcional, objetiva, geométrica, e estritamente modular, princípios que remetem bastante ao que pregava Théo dentro do neoplasticismo. Dentro desse manifesto, Moholy-Nagy declarou:

“Tipografia deve comunicar claramente na forma mais urgente. Claridade deve ser enfatizada. Nossa atitude intelectual perante o mundo é individualmente precisa (essa precisão está mudando hoje para precisão coletiva, ao contrário da velha individualidade e das formas amorfas. Portanto. Acima de tudo, claridade não ambígua em toda tipografia. Legibilidade não deve nunca sofrer a causa de um código estético criado anteriormente. ”
(MOHOLY-NAGY Apud PAVESI. Arte e Indústria na Arquitetura Moderna Bauhaus: Tipografia e Design Gráfico. pp. 4)

           
Esse manifesto elevou o húngaro a um patamar sólido de autoridade em tipografia dentro da Bauhaus e em seus arredores, no entanto seus apelos não conseguiram se expandir para muito além de seu público natural, dentro da escola e arredores. Foi ainda em 1923, quando, inspirado por László, Jan Tschichold publicou seu famoso artigo “Elementare Typographie”, em tradução literal ‘Tipografia Elementar’, que mais tarde, em 1928, culminou num livro de nome homônimo ao artigo publicado por Moholy-Nagy em 1923, “Die Neue Typographie”, que o húngaro foi ouvido e os princípios da tipografia que ele pregava foram difundidos em maior escala. Isso se deu pois Tschichold por ser um renomado tipógrafo tinha o argumento de autoridade ao seu lado, logo foi ouvido com maior fervor e atenção pela academia e designers da época.




Bibliografia

SAMMARA, Timothy. Grid: construção e desconstrução. São Paulo: Cosac Naify. 2008.

LUPTON, Ellen. MILLER, J. Abbott. ABC da Bauhaus. Cosac Naify. 2008.

MARTÍNEZ, N. F. A Tipografia como Imagem. Coletivo do Mestrado em Artes (CoMA). Instituto de Artes, Universidade de Brasília. Publicações de 2004, Seção Arte & Tecnologia. 2004. Disponível em: http://www.geocities.ws/coma_arte/textos/noelfernandezmartinez.pdf. Acesso em: 02 de novembro de 2018.

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PAVESI, Lorenza. Arte e Indústria na Arquitetura Moderna. Bauhaus: Tipografia e Design Gráfico. Disponível em: https://www.academia.edu/6462839/Arte_e_Ind%C3%BAstria_na_Arquitetura_Moderna_Bauhaus_Tipografia_e_Design_Gr%C3%A1fico. Acesso em 02 de Dezembro de 2018.

JAFFÉ, Hans Ludwig C.; BOCK, Manfred; FRIEDMAN, Mildred. De Stijl: 1917-1931. Belknap Press of Harvard University Press, 1986. Disponível em: https://www.dbnl.org/tekst/jaff001stij01_01/jaff001stij01_01.pdf. Acesso em 30 de Novembro de 2018.

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HETILINGER, Paulo. Bauhaus: o impulso decisivo para o Modernismo. 2007. Disponível em: http://tipografos.net/bauhaus. Acesso em: 30 de Novembro de 2018.







Texto desenvolvido por  Giovana Gabrielle da Silva Rodrigues sob a orientação do Prof. Dr. Rodrigo Boufleur, para a disciplina Introdução ao Estudo do Design. O texto colabora com o projeto de extensão “Blog Estudos sobre Design” (http://estudossobredesign.blogspot.com) - Universidade Federal do Rio Grande do Norte - Departamento de Artes - Bacharelado em Design - Novembro de 2018.


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